23.4.16

Caravaggio


Houve rebuliço nos jornais. Caravaggio encontrado em sótão em Toulouse, sul da França.

Estudiosos em história da arte discutiram no mundo inteiro se pode mesmo ser original. Afinal, é conhecido que Caravaggio morreu na Toscana, não no sul da França.

As semelhanças observadas, no entanto, eram incríveis. Para um cadáver de trezentos anos, o corpo estava bastante conservado. A pele repuxada sobre os músculos carcomidos do tórax revelavam bem as cicatrizes características de décadas de brigas de bar. As mãos ainda guardam resquícios de pigmento preto encrostados na pele, resultado de anos de má higiene.

Apesar das impressionantes conformidades físicas, especialistas ainda precisavam fazer testes com os materiais para averiguar sua autenticidade, como raio-X e carbono-14. O governo já havia anunciado que Caravaggio permanceria em solo francês para facilitar o andamento dos exames, que eram realizadas no Louvre. 

Durante a fase de pesquisas e certificação, hipóteses já haviam sido levantadas quanto ao valor inestimável do artefato. O governo italiano já reclamava o corpo para si, alegando que o pintor deveria descansar em Roma, onde passou a maior parte da carreira. Os últimos sobreviventes da família Caravaggio recentemente entraram na disputa.

Resta saber quão dispostos estão os colecionadores particulares.

14.4.16

A ausência se tornou tão plena às quatro horas da manhã que era impossível ignorar. Às cinco, já sabíamos seu destino. Dor e sofrimento tomavam conta da casa. Menos de mim, é claro, incapaz de sentir qualquer coisa. Talvez nunca tenha sentido nada na vida. Talvez nunca sequer tenha amado. A empatia parou quando preferiu guardar o próprio dinheiro suado dos pais para comprar doces franceses e água engarrafada em vez de dá-los a mendigos visivelmente mortos de fome. Primeiro os mendigos, depois os artistas de rua, depois aqueles representantes irritantes da Unicef – você gosta de crianças? Detesto crianças. Evidentemente também detesto cachorros e gatos e cactos e qualquer ser vivo que requeira um mínimo de cuidado. Não sei o que é culpa. Sinto apenas a imensa paz e a gratidão sublime que se torna amor renovado pela chefe da matilha que cumpriu a trajédia, tornando o retorno a este lugar muito mais agradável.

1.4.16

Agora toda vez que faço movimentos bruscos, minha espuma cai um pouquinho e me sinto cada vez mais vazio. Não bastasse minha pelúcia que está imunda desde o dia que cheguei aqui. Aquele menino…

Primeiro foram meus botõezinhos, um em cima do outro, costurados à mão na minha barriguinha, arrancados brutalmente por uma pinça roubada da gaveta do banheiro da Mãe. Depois fui sujeito às mais abjetas formas de experimentação. Fui usado como bola, atirado por cima de muros, até fui amarrado ao rabo de Cachorro e arrastado por todo o quintal. Coisas a que um urso da minha estirpe jamais deveria ser submetido.

Minha última tortura, a retirada dos meus braços, foi especialmente cruel. Depois de um dia inteiro deixado na chuva, fui novamente submetido à maldade do Cachorro. Dotado de um sadismo ímpar, decidiu comer meus bracinhos e usá-lo para me jogar para lá e para cá. Fiquei todo furado, com espuma que formavam dedos. Estava começando a me acostumar com minha nova forma desfigurada, quando Ele decidiu que gostaria de me mutilar mais uma vez.

– É muito grave, enfermeira! – ouvi-o dizer, enquanto me cegava com uma lanterna – Teremos que amputá-lo!

Um monstro! Já ouço seus passos se aproximando para me torturar novamente. Me jogo nas profundezas mais escuras debaixo da cama para que Ele não possa me encontrar. Ouço-o circundando minha fortaleza aos poucos. Sua respiração está cada vez mais próxima. Ouço-o chamar meu nome. Fique calmo, coração!, ele vai te ouvir!

Vejo seus pés e chinelos através da cortina do lençol. Ele para. Sabe onde estou. Vejo joelhos e mãos. Na mão direita vejo o terrível objeto do terror brilhante à luz das lâmpadas incandescentes do quarto. O objeto que assola meus pesadelos, que congela minhas entranhas, que me provoca taquicardia. A terrível tesoura sem ponta. A mesma responsável pela minha bruta amputação!

Então eu entendo, sem que ele precise dizer ou fazer qualquer outra ação, exatamente a espécie de horror que pretende dessa vez. Meus pés congelam, sinto náuseas.

Meu Deus, meus olhinhos! Não meus olhinhos!

Ele sabe onde estou. Ele está chegando. Está chegando! Talvez se eu fechar os olhos na vã esperança de protegê-los. Se ao menos eu tivesse pálpebras que prolongassem minha agonia!