11.5.05

†Gótico†
Parte 1


Ventava muito. Estava tudo muito silencioso. O silêncio, na verdade, incomodava mais que a barulheira de gritos e de prateleiras despencando que acabara de se suceder.

O inspetor fechou os olhos, tentando esquecer-se do horror que presenciara. Isto não iria acontecer com tanta rapidez. Ainda estava tudo tão lívido em sua mente. Estremeceu e reabriu os olhos. Olhando à direita, viu sua companheira, Safira, jantando ao contar o que havia ocorrido aos policiais. Ele não entendia como ela conseguia comer num momento destes.

– Então, seu polícia – disse ela, entre uma garfada e outra de bife mal-passado, sangrando – eu já conhecia o Pedrinho do consultório, sabe?, Mas não pensei que seria capaz de fazer o que fez – mordeu o bife enquanto procurava o que dizer – Eu vou ter que pensar, remoer, entende?, sobre o que eu vi hoje. Depois eu conto pra vocês – ela dirigiu um olhar ligeiro ao inspetor – Não perguntem nada a ele – disse, afinal – teve uma noite difícil, é melhor não incomodá-lo.

Safira abocanhou o último pedaço do seu prato, despediu-se dos policias e seguiu até o inspetor.

– Não entendo como você consegue ver carne numa hora dessas – ele disse, sem expressão no rosto ou na voz.

– Fome – respondeu a menina simplesmente – Eu odeio fazer papel de boba. Odeio policiais me questionando – completou mais duramente.

– Você quer que eu te acompanhe até em casa? Para não ficar sozinha?

– Eu nunca estou sozinha – respondeu com um sorriso, enquanto caminavam e, atingindo uma esquina, completou:

– Pode me deixar aqui.

Despediram-se.

A estrada estava molhada de chuvas passadas. E de lágrimas, pensou Safira, sempre há lágrimas. Ela puxou o casaco para mais perto de si e, vendo a iluminação que indicava a lojinha sobre a qual morava, apressou-se a subir a ladeira. Pelos cantos dos olhos via sombras saindo da escuridão. Fechou-os e desatou a correr.

Chegando à lojinha, fechou a porta com as costas e manteve-se lá ainda por algum tempo, encostada na porta. Respirou fundo.

Quando foi mesmo que conhecera Pedrinho? Havia sido curioso, lembrava-se, foi em uma daquelas ridículas sessões de terapia em grupo. A Doutora tinha estimulado que ela fosse a fim de conhecer outras pessoas com o seu problema. Pedro era a pessoa mais interessante de lá. Parecia até normal. Ele ouvia coisas, enquanto Safira os via. Era charmoso, disso ela lembrava-se muito bem.

Então entrava na história Amélia. Pedro havia se encantado por ela no momento em que a vira. Não, ele havia desenvolvido uma obsessão por ela. Safira não a havia conhecido, mas, pela descrição de Pedro, ela parecia perfeita.

Franzindo a testa e subindo as escadas vagarosamente, lembrava-se da descrição de Amélia:

– Perfeita em seus contornos e seu recheio. É doce e gentil, muitíssimo bela. Seus cabelos dourados como o sol, anelados e compridos. Face alva como jasmins. Ó! Seu cheiro é de jasmins! – delirava Pedrinho.

Mas Safira sabia que Pedro e Amélia jamais tinham se falado. Pedro conhecia-a somente por vista. Era um amor platônico e inalcançável. A amada nem sabia de sua existência.


Safira riu ao lembrar-se disso. Riu sadicamente, também, quando lembrou que toda essa paixão acabaria por tornar-se morte.

Já estava no andar de cima, entrando, o mais silenciosamente possível, no seu quarto. Sentou-se na cama e tirou os coturnos pretos, jogando-os pelo quarto. Apoiou a cabeça na parede fria, olhando a rachadura próxima ao teto. Dele, saiu o que parecia um dragão oriental pequeno ou um lagarto muito grande, verde fluorescente, com longas barbas e um sorriso amigável no rosto.

– Pedro foi preso hoje – Safira contou à criatura – Eu não pensei que fossem-no pegar. Era tão inteligente.

A expressão do dragão tornou-se séria e ele veio aconchegar-se no colo da menina. Ela acariciou-lhe o pescoço e tornou a fechar os olhos.

A cada dia a obsessão tornava-se maior.

– Ela é tão pura num mundo tão sujo quanto o nosso. Tão cheio de pecados e maldades para aquele anjo... – dizia ele, sempre delirando. Os olhos brilhavam quando ele pensava nela (o que fazia com que seus olhos estivessem sempre brilhando naqueles dias).

A idéia de que o mundo era por demais imperfeito para Amélia concretizava-se cada vez mais na mente doentia de Pedro.

– Então a tire daqui, Pedro – havia brincado Safira, quando ele a contou seus planos. Aquilo havia sido estúpido, pois a sua voz não fora a única a revelar como poderia ser fácil tornar o mundo perfeito para Amélia. Alguns dias depois, a Doutora viera procura-la dizendo que Pedro estava com algumas idéias estranhas.

– Ele diz que milhares de vozinhas, inclusive a sua, Safira, estão lhe dizendo para “levar o anjo ao paraíso”. Você tem alguma relação com isso? – havia perguntado, desconfiada.

Safira mentira que não.


Mergulhou os dedos pelos cabelos lisos e negros. Agarrou alguns fios e começou a puxar, martirizando-se. O dragão começou a miar e ela parou.

Então começou a espalhar-se a notícia do sumiço de Amélia. Ao questionar Pedro o que ele achava disso, apenas choramingava baixinho:

– Ela não é mais pura... Nunca mais será virgem ao luar...

A Doutora começou a preocupar-se com a súbita depressão de Pedro. A essa altura, a polícia já estava procurando pela menina e, a cada dia, Pedro parecia mais tenso e alegava sempre que sua musa havia perdido a ingenuidade.

Foi aí que a polícia resolveu perguntar por ela no consultório (Amélia era uma recepcionista lá), onde, simultaneamente, Pedro parou de freqüentar. Safira havia começado a suspeitar o que estava acontecendo.

Passaram-se dias. E então, finalmente, descobriram Pedro.


Safira riu da lerdeza dos policiais.

– Algumas pessoas são tão devagar... – contou ao seu lagarto.

Demoraram mais algumas semanas para tirar de Pedro qualquer sinal de insanidade. Ele era excelente ator, como todos os loucos.

– Diga-me, Pedro – perguntou o inspetor certa vez quando ambos se encontraram no consultório – você conheceu Amélia, não conheceu?

– Claro que a conheci – respondeu um Pedro lúcido, sano, como se estivesse falando do tempo – todos aqui a conheciam, ela era a recepcionista.

– E o que você achava dela?

– Não me trate como criança – respondeu o louco com dureza.

– Sim, mas o que achava dela?

– Atraente. Era uma mulher, óbvio que era atraente.

Safira, que estava na mesma sala de espera ouvindo a conversa, riu baixinho. O inspetor percebeu, mas tratou de perguntar o motivo do riso só depois que Pedro havia saído da sala. Safira precisou de muita persuasão para contar este detalhe, entretanto, como qualquer boa amiga faria. Apesar disso, o inspetor logo começou a suspeitar ainda mais de Pedro (através das indiretas abstratas que a menina soltava) e resolveu revistar a sua casa.

Safira mexeu na cama, perplexa pela segunda vez, recapitulando amargamente os acontecimentos das últimas semanas. Esta noite, porém, havia mudado tudo. Para sempre.

O aroma da noite estava muito vívido em sua mente, ainda. O inspetor havia, finalmente, depois de muito incentivo, conseguido que ela fosse passear em seu carro. Debaixo do sobretudo dela estava uma adaga.

É aqui que Pedro mora, não é? – perguntou o inspetor numa voz que só ele achava que poderia ser considerada paternal, ao virar uma esquina. Safira assentiu com a cabeça – Vamos fazê-lo uma visitinha.

O carro estava cheio de demônios. Mais alguns caminhavam devagar nas ruas. Era possível ver os rabos e as asas dobradas sob seus trajes, na tentativa de mistificar-se. A garota encolheu-se, fechou os olhos, pressionando a testa. Adquiriu apenas uma dor de cabeça ainda mais forte.

À medida que se aproximavam da casa de Pedro, os demônios tornavam-se mais abundantes. Safira sabia exatamente o que isto significava, mas negava a acreditar.

O inspetor parou o carro, desceu e abriu a porta de Safira.

– Vai sair? – perguntou, agora mais impaciente.

Na verdade não queria, mas, trêmula, forçou-se a caminhar até a porta de entrada, enfrentando sorrisos sinistros e olhos gulosos das criaturas da noite enquanto passavam.

Dentro da casa, todas as luzes estavam apagadas. O inspetor arrombou a porta chutando-a, parecendo não perceber a criatura de ouvidos compridos que caçoava dele.
Safira riu. O inspetor riu também, pensando que o riso tratava-se dele. Safira não desmentiu.

Entraram. O corredor estava escuro. Tudo cheirava fortemente de jasmins.


***


CONTINUA...

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